terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

“RETRATOS DA SECA” MOSTRA ANGÚSTIA DO PRODUTOR RURAL

Durante expedição foram encontrados  diversos "cemitérios de animais"
com centenas de ossadas expostas em terra quente (Foto: José Aldenir)
A seca que já perdura há um ano no Rio Grande do Norte, além das perdas materiais, está produzindo uma espécie de angústia coletiva nos produtores rurais. Da Região Central, sob a imponência do Pico do Cabugi, passando pelo Alto Oeste, por onde tradicionalmente a quadra chuvosa começa, até os Municípios que compõem a chamada tromba do elefante, na divisa com a Paraíba, todo pequeno prenúncio de chuva é suficiente para que os agricultores larguem tudo e empreendam uma corrida desesperada para preparar as terras que receberão as sementes de milho e sorgo distribuídos pelo Governo do Estado.
Para descobrir porque um problema secular como a seca continua sem solução, amarrando o Estado à vergonhosa dependência dos carros-pipa e liquidando com as reservas econômicas acumuladas por gerações de uma mesma família de produtores rurais, a Federação da Agricultura (FAERN) organizou uma expedição que, da última sexta-feira (22/02/2013) até domingo (24/02/2013), percorreu aproximadamente 1.200 quilômetros de rodovias federais e estaduais, embocando por estradas vicinais pedregosas, levando no ‘lombo’ mais de 40 jornalistas, entre repórteres, fotógrafos, cinegrafistas.
Durante estes três dias, começando sempre às 5 da manhã até o entardecer, milhares de fotos foram tirados, dezenas de depoimentos colhidos, horas de vídeo gravados, em uma expedição onde os profissionais de imprensa tiveram a liberdade de conduzir seus trabalhos com independência, sem interferências externas de Prefeitos, partidos ou políticos.
A única condição imposta pelo roteiro foi buscar propriedades produtivas com impacto direto na vida das populações, evitando os dois extremos da paisagem rural: os assentamentos rurais atingidos pelo Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf), de um lado, e os projetos irrigados com escala de exportação, de outro.
Desde o início ficou bastante claro que o objetivo da viagem se debruçaria nos efeitos da seca sobre produtores tradicionais, que efetivamente movimentam a economia agrária do Estado com a produção de leite e carne, e que estão perdendo tudo com a estiagem. E tentar explicar porque essa tragédia anunciada ocorre ciclicamente sem que as autoridades interfiram decisivamente para mudar essa realidade.
Postas as condições da expedição, a FAERN só estabeleceu rápidos contatos com as lideranças políticas nas Câmaras Municipais dos Municípios previamente agendados, mas a prioridade absoluta foi concentrada no roteiro de campo, no depoimento dos produtores, na visita às propriedades, na visão deprimente dos cemitérios de animais comuns em todas as regiões visitadas.
A primeira parada, na sexta-feira (22/02), foi Lajes, na região Central Potiguar, a 125 km de Natal, seguida de Angicos e Assu. No sábado, foi à vez de Apodi, no Oeste potiguar, terminando em Pau dos Ferros, na divisa com a Paraíba. Um dia inteiro para cada região, uma viagem relâmpago, é verdade, mas a única (e inédita) maneira de conseguir arrastar para fora das redações o maior número possível de Jornalistas.
Neste domingo, ao encerrar a expedição, após passagem por Caicó, o Presidente da FAERN, José Álvares Vieira, fez uma avaliação do que foi visto ao longo da viagem e com a voz embargada, admitiu: “Antes de pegarmos a estrada, eu esperava encontrar uma realidade um pouco diferente depois das últimas chuvas, mas não imaginava que as coisas estivessem tão ruins”.
Um das conclusões foi que, mesmo se restabelecendo neste ano, o que é uma possibilidade bastante discutível, uma década será necessária para recompor os estragos produzidos pela atual estiagem, cuja comparação com as grandes secas da história já deixou para trás vários eventos registrados nos últimos 50 anos.
A segunda conclusão da expedição, segundo a avaliação final, foi que a assistência técnica no campo, por parte dos órgãos competentes, deixa muito a desejar – não é profissional, sistemática e continuada e, quando ocorre, limita-se a uma visita, um cafezinho e só.
Ficou bastante clara também a decadência das propriedades rurais. Com a estiagem prolongada, os produtores perderam quase todos os empregados e encontram dificuldades, pagando R$ 50 reais de diária, até para conseguir alguém disponível para cortar o xique-xique que alimentará o gado magro que se equilibra sobre as patas.
A explicação para isso foi atribuída pelos produtores, em parte, ao efeito bolsa, que eles admitem ter trazido menos pressão nas relações de trabalho no campo, mas afastou os trabalhadores daquilo que eles deveriam mais prezar: o trabalho.
A outra conclusão veio da boca de Prefeitos que recepcionaram a expedição e que se queixaram da lentidão das ações do governo estadual no combate à seca, que se limitou a repassar os recursos federais sem se importar muito com a construção de um plano de prioridades. A falta de projetos articulados e as incertezas na Secretaria da Agricultura, ainda sob o comando provisório de José Simplício, foram lembrados.
O atraso com que o milho subsidiado dos estoques da Companhia Nacional de Abastecimento começou a chegar ao Estado também figurou entre as queixas dos produtores, que perceberam as dificuldades da Companhia no Estado em atender o crescimento vertiginoso no número de produtores cadastrados. De uma hora para outra, os carregamentos que chegavam com atraso eram disputados às vezes à tapa pelos produtores, afugentando muitos que precisavam desesperadamente do produto.
O preço pago pelo Programa do Leite, cujos pagamentos serão retomados agora com a abertura do orçamento, são considerados insuficientes pelos produtores, cujas produções despencaram no mesmo ritmo com que a produção de mel e castanha sumiram do cenário agrário da região Alto Oeste.
A impossibilidade de levar seus rebanhos de carreta para alimentá-los em pastagens de outros Estados, uma das conseqüências das barreiras levantadas por Pernambuco e Ceará ao atraso e a desorganização do RN no processo de controle da aftosa no Estado, também figurou entre as queixas, desta vez de produtores com rebanhos maiores.
A burocracia na concessão de crédito pelo BNB também recebeu muitas críticas dos produtores ouvidos pela Expedição, mas revelou o endurecimento das exigências do agente financeiro para evitar possíveis fraudes, ironicamente numa época em que os recursos para a seca encontram as menores taxas de juros da história.
Na área rural do Município de Pau dos Ferros, uma chuva de 90 milímetros no final da semana anterior animou o produtor Paulo Lucena Costa a pagar um tratorista do próprio bolso a R$ 100/hora para correr o arado por suas terras, preparando o terreno para o milho e o sorgo que começam a chegar por meio do programa de distribuição de sementes do Governo do Estado. Se não caírem novas chuvas nos próximos dois ou três dias, Lucena já sabe que o prejuízo é certo.
Foi com a mesma ansiedade que, no ano passado, os produtores conseguiram zerar os estoques de sementes, sem conseguir fazer com que nada germinasse. Sem forragem e energético para dar aos animais, quase todas as propriedades produtivas do Estado têm hoje seu próprio cemitério de animais e um curral onde os últimos esforços são feitos para salvá-los. Um ‘pronto atendimento’, como diz o produtor Francisco Sobrinho Soares, o Sobrinho do Açude, que acompanha pessoalmente a agonia dos animais que cruzam o seu cercado.
Aqueles que não respondem ao tratamento do Dr. Francisco, nas dependências de seu pronto atendimento, vão para ‘rede’, onde dois pedaços de madeira retirados de árvores e ligados por um lençol dão algum conforto às últimas horas do animal. Assim que morrem, praticamente pele e osso, eles são deixados num terreno próximo, onde os urubus e outros animais se banqueteiam.
A Expedição ‘Retratos da Seca’ encontrou diversos desses cemitérios. O maior deles tinha até o último domingo 170 ossadas e está localizado na Fazenda Pedrinha, de propriedade dos irmãos Nóbrega. O patriarca Raimundo Belo comprou a propriedade em 1964, dois anos depois de tê-la conhecido. Com cinco mil hectares, as terras extremamente pedregosas dali estão atualmente divididas em três propriedades, cuidadas pelos oito irmãos, todos vivendo de suas profissões fora e até em outros Estados.
Das 1.500 cabeças de antes da seca, no começo de 2012, o advogado Raimundo Nóbrega Filho, um dos proprietários, diz que não há mais do que 500 hoje, num dos casos onde o gado de corte predominou sobre a pecuária leiteira. Quando a seca começou, o dono dava palha de cana, depois passou para torta de algodão, milho e sal em proporções iguais e, por último, ‘cama de galinha’, uma pasta resultado do excremento da galinha, proibido pelo Ministério da Agricultura desde 2004, mas altamente energético.
“Se tem gente fumando crack, cheirando cocaína por que eu não daria cama de galinha para o meu rebanho?”, desafia Raimundo Nóbrega, que pensa em mover uma ação judicial por perdas contra o Estado por causa das barreiras levantadas por Pernambuco e Ceará ao trânsito animal do RN para aqueles Estados, ainda no ano passado. “Se foi o Estado que provocou essa situação por não trabalhar como deveria, acho ser meu direito exigir um reparo”, sustenta. Sem poder levar o rebanho para se alimentar fora dos limites territoriais, desde então a fazenda não faz outra coisa a não ser aumentar seu já populoso cemitério.
Questionado se pensa em sair da atividade, o advogado é taxativo: “Falando pelos meus irmãos, não. Agora, já gastamos tudo o que temos, daqui pra frente as coisas podem piorar e muito”, alerta. “São 30 anos de trabalho e isso não pode acabar assim de uma hora para outra”, completa.
Não muito longe dali, na Fazenda Alegre, onde o proprietário Paulo Lucena se apressa para dar destinos às sementes, aproveitando às chuvas da véspera, das 300 cabeças que mantinha até o começo do ano passado, hoje restam 100, quando muito. “Nunca gosto de fazer essa conta”, afirma.
Dos 350 quilos brutos de peso médio, seus animais mais saudáveis caíram para 100 quilos. “Desde então, o governo deste Estado não fez nada, nunca recebi um engenheiro agrônomo por aqui para nos ajudar”, reclama.
Na região que mais recebeu financiamentos do Banco do Nordeste (R$ 16 milhões das linhas especiais voltadas para a estiagem), Paulo Lucena não tirou um tostão, mas há um motivo: as terras ainda estão em nome do pai, o que dificulta o processo em relação a quem vai tomar o empréstimo. “Essa é a burocracia a que os produtores se referem”, explica Paulo Régis, Secretário de Agricultura, Abastecimento e Recursos Hídricos do Município.
Sofrimento dos produtores rurais pode aumentar
Os efeitos da seca no Rio Grande do Norte não pouparam nem os maiores produtores como é o caso do emblemático Antônio da Volta, ou Antônio Arruda da Cunha como é menos conhecido na região de Santana do Matos, o maior produtor de leite do Estado.
Com processos e manejos considerados sofisticados, Antônio da Volta come, dorme e vive por meio do negócio que tem 1.176 hectares e outras áreas arrendadas com um respeitável rebanho de 1.500 cabeças de gado, além de outras 1.500 com cabras e ovelhas. Diz o proprietário, que vive e trabalha na propriedade, que há um ano e meio ele já teve o dobro de animais. “Eles só não morreram porque eu os vendi antes”, afirma.
Os números superlativos do produtor resultaram também numa dívida bancária de R$ 1 milhão – destes, R$ 700 milhões com o BNB, segundo informações fornecidas por ele mesmo. Antônio da Volta afirma que com os preços atuais do farelo de soja, do milho e da torta de algodão, receber R$ 0,93 por litro de leite do Governo do Estado através do Programa do Leite seria, no mínimo, uma “piada de mau gosto”.
Com uma fração mínima dos trabalhadores que tinha até o ano passado, ele fala das dificuldades que os produtores têm hoje para conseguir alguém que receba R$ 50 reais pela diária. “São tantas bolsas, tantas facilidades, que o sujeito prefere fazer filhos para receber as bolsas do Governo Federal do que segurar no cabo da enxada”, ele desabafa Antônio da Volta.
A 15 km da fazenda de Antônio da Volta, em Santana do Matos, está a fazenda Timbaúba, hoje tocada por Amariles Borba de Albuquerque, resultado de uma divisão de 6 mil hectares em quatro propriedades. No centro de tudo isso está uma joia que já pertenceu a Aristófanes Fernandes, que dá nome ao Parque de Exposições em Parnamirim – um casarão em estilo espanhol, que apesar de machucado pelo tempo, ainda guarda a imponência de sua construção original.
Desde que o pai de Amariles, João Fragoso, sofreu um derrame, há quatro anos, é ela quem toca os negócios que incluíam, até o ano passado, 700 cabeças de gado. Até agora, ela ainda não teve coragem de recontar o rebanho, apesar de algum benefício trazido à propriedade por um açude com capacidade total para três milhões de metros cúbicos e que nunca secou. “Mas o problema aqui não é a água, é a comida para o gado”, lembra Amariles. E com um agravante: “Quando a saída é vender os animais, não tem quem compre ou, quando tem, eles oferecem valores aviltantes com prazos gigantescos”, afirma.
Embora tenha conseguido comprar algum milho da Conab com ajuda da cooperativa local, Amariles diz que nunca sequer ouvir falar no programa de distribuição de volumoso do Governo do Estado.
Para uma propriedade que já sediou os primeiros leilões de gado do Estado, originando a homenagem a Aristófanes Fernandes, que dá nome ao Parque de Exposições que sedia anualmente a Festa do Boi, a espera por dias melhores dá o tom da tragédia recorrente da seca. Aquela que acaba com as economias e auto estima dos produtores e liquida com a tradição centenária da luta do produtor no semiárido.
Por: Marcelo Holanda - Jornal de Hoje

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